Introdução
Em 1928, a descoberta da penicilina revolucionou a medicina, dando início a uma era em que as infecções antes podiam ser combatidas de forma eficaz. Hoje, menos de um século depois, estamos em risco de retroceder para uma era pré-penicilina. E essa ameaça não vem de um único vírus ou bactéria, mas de uma aparência que passa despercebida pela maioria das pessoas: a resistência antimicrobiana (AMR). No caos das guerras modernas, como em Gaza e Ucrânia, as infecções resistentes a medicamentos encontram o terreno perfeito para prosperar. Você já imaginou como uma guerra pode influenciar o surgimento de superbactérias que poderão se espalhar por todo o mundo? Esse é o cenário alarmante que os especialistas têm e que pode afetar a saúde global de forma devastadora.
A Guerra como Berço das Superbactérias
As zonas de guerra oferecem um ambiente caótico e insalubre que facilita o surgimento de bactérias resistentes a medicamentos. Em Gaza, por exemplo, após 11 meses de intensos bombardeios, os médicos são deparados com uma situação desesperadora. Em meio à falta de medicamentos e equipamentos básicos, eles são obrigados a tomar decisões drásticas, como amputar membros de crianças feridas para salvar suas vidas. O motivo? As infecções que eles estão enfrentando já não respondem mais às antibióticos disponíveis.
Segundo Hanan Balkhy, diretor regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o Mediterrâneo Oriental, Gaza se tornou um “terreno fértil para superbactérias”. A crise, no entanto, não se restringe a essa região. Outras zonas de conflito, como a Ucrânia e o Sudão, apresentam condições semelhantes, o que pode levar ao aumento da resistência antimicrobiana, ameaçando se espalhar para regiões vizinhas e, eventualmente, para o mundo todo.
As Origens do Problema: A Resistência Antimicrobiana
A resistência antimicrobiana ocorre quando bactérias, vírus, fungos e parasitas evoluem e se tornam resistentes aos medicamentos usados para tratá-los, como bactérias, antivirais e antifúngicos. Isso pode acontecer de forma natural, mas é acelerado pelo uso excessivo e inadequado desses medicamentos. O problema se agrava em ambientes como Gaza, onde há uma escassez extrema de medicamentos, dificultando o tratamento adequado de infecções.
Desde a descoberta da penicilina, novos antibióticos foram desenvolvidos para tratar uma variedade de infecções. No entanto, o uso prejudicial de medicamentos desses ao longo dos anos permitiu que bactérias evoluíssem, criando uma resistência que está rapidamente superando a capacidade das antibióticos atuais. Em 2019, as infecções resistentes a medicamentos foram responsáveis por cerca de 1,3 milhão de mortes diretas em todo o mundo, contribuindo para mais de 5 milhões de óbitos.
O Efeito Devastador da Guerra
Mas como exatamente a guerra contribui para a propagação de superbactérias? A resposta é no caos e na destruição causada pelos conflitos. Imagine o cenário descrito por Balkhy: uma criança ferida, resgatada dos escombros de um prédio destruído, com os ossos expostos e gravemente contaminados. Essa criança é vulnerável a infecções e os médicos, sem os recursos adequados, não podem fornecer o tratamento necessário. A guerra também protege infraestruturas de saneamento, causando o acúmulo de esgoto e resíduos, que aumenta a nutrição de bactérias.
Além disso, a presença de metais pesados, liberados pelas explosões de bombas e o colapso de edifícios, agravam o problema. Pesquisas sugerem que bactérias expostas a metais pesados, como chumbo e zinco, podem desenvolver resistência não apenas a esses elementos, mas também a antibióticos. Esse fenômeno foi observado em Gaza, onde metais pesados estão se tornando um fator adicional na evolução das superbactérias.
Antoine Abou Fayed, microbiologista da Universidade Americana de Beirute, expressa preocupação com o impacto a longo prazo desses metais. Segundo ele, uma exposição prolongada pode levar ao surgimento de bactérias capazes de resistir tanto aos medicamentos quanto aos metais, criando uma ameaça ainda mais difícil de combater.
A Crise no Sistema de Saúde
Outro agravante da situação nas zonas de guerra é a total falta de infraestrutura de saúde. Em Gaza, por exemplo, os poucos laboratórios que restaram não têm condições de realizar testes que identifiquem resistência antimicrobiana. Isso significa que os médicos estão praticamente “voando às cegas”, sem saber exatamente com o que estão lidando. O resultado é o uso contínuo de antibióticos ineficazes, o que só piora a situação.
Sameer Sah, diretor de programas de Ajuda Médica aos Palestinos, explica que a escassez de medicamentos é um dos principais fatores para a propagação da resistência antimicrobiana. Quando os medicamentos certos não estão disponíveis, os pacientes recebem tratamentos inadequados ou incompletos, o que aumenta a probabilidade de que as bactérias se tornem resistentes. Numa zona de guerra, onde o transporte de pessoas e a destruição da infraestrutura tornam o acompanhamento dos pacientes quase impossível, esse problema é agravado.
Perspectivas Futuras e Impactos Globais
Embora Gaza seja o exemplo mais alarmante, não é o único lugar onde a resistência antimicrobiana está se tornando uma preocupação urgente. Na Ucrânia, onde a guerra contra a Rússia já dura anos, a situação não é muito diferente. Embora o sistema de saúde do país ainda tenha laboratórios capazes de testes de resistência bacteriana, a pressão exercida sobre os profissionais de saúde é imensa. Os médicos são solicitados a tomar decisões rápidas, muitas vezes sem a possibilidade de esperar pelos resultados laboratoriais antes de iniciar ou mudar o tratamento de seus pacientes.
Jarno Habicht, representante da OMS na Ucrânia, ressalta que o país fez progressos significativos na vigilância de bactérias resistentes a medicamentos antes da guerra, mas a realidade do conflito dificulta a aplicação das melhores práticas. Com hospitais lotados e com falta de recursos, o uso indevido de antibióticos se torna uma prática comum.
Especialistas, como Dmytro Skirhiko, um clínico geral de Kiev, destacam que a guerra aumenta a propagação de infecções em abrigos lotados e mal ventilados, e torna a regulação da venda de precauções praticamente impossível. Como resultado, as antibióticos são frequentemente compradas sem prescrição médica, aumentando o risco de uso incorreto e, consequentemente, de resistência bacteriana.
Análise Crítica: O Custo Global
A resistência antimicrobiana em zonas de guerra não é um problema localizado. Como as fronteiras não conseguem conter a propagação de bactérias resistentes, os especialistas alertam que a crise pode se espalhar rapidamente para outras partes do mundo. Israel, por exemplo, corre um risco imediato de ser o primeiro país afetado pela disseminação das superbactérias de Gaza. Mas os especialistas alertam que, em pouco tempo, essas bactérias podem atingir a Europa, os Estados Unidos e outras regiões, criando uma crise de saúde pública global.
Diante desse cenário, a comunidade internacional precisa agir rapidamente. Os líderes globais já estão se reunindo na ONU para discutir a resistência antimicrobiana e buscar soluções. No entanto, o progresso tem sido lento, e os conflitos em curso em locais como Gaza e Ucrânia só agravaram a situação.
Conclusão: Uma Reflexão e um Chamado à Ação
A resistência antimicrobiana é uma das maiores ameaças à saúde global, e as guerras modernas estão acelerando essa crise de forma alarmante. O que acontece em Gaza, Ucrânia e outras zonas de conflito não é apenas uma tragédia local, mas um alerta global. Estamos à beira de um retorno à era pré-antibióticos, onde infecções simples podem novamente se tornarem fatais.
A única maneira de evitar esse cenário é agir agora. Os líderes mundiais precisam priorizar a luta contra a resistência antimicrobiana e garantir que os sistemas de saúde, especialmente em zonas de guerra, tenham os recursos necessários para combater essa ameaça. Mas essa não é apenas uma responsabilidade dos governos; todos nós temos um papel a proteger, desde o uso responsável de antibióticos até a conscientização sobre os perigos da resistência antimicrobiana.
Se agirmos rapidamente, ainda há esperança de conter a propagação das superbactérias e evitar uma crise de saúde pública de proporções globais. O futuro da medicina e a saúde de milhões de pessoas dependem disso.