Introdução
Em uma manhã silenciosa de novembro de 2022, em um vilarejo nos arredores de Mekelle, a capital da região do Tigray, na Etiópia, crianças brincavam nas ruas enquanto os adultos trabalhavam em silêncio, reconstruindo casas destruídas por bombas. Apenas alguns dias antes, líderes etíopes e representantes da Frente Popular de Libertação do Tigray (TPLF) haviam assinado um acordo de paz que prometia encerrar dois anos de um conflito devastador. Para muitos, era um raio de esperança, um cessar-fogo que significava a chance de um novo começo.
Mas a história raramente é tão simples. Dois anos depois, o que parecia ser um capítulo encerrado na história etíope agora ressurge como o prenúncio de novos conflitos. Questões não resolvidas, desconfiança entre facções e a luta por poder e recursos ameaçam não apenas a estabilidade da Etiópia, mas também de toda a região do Chifre da África.
Para entender o que está em jogo, é crucial explorar as raízes históricas, as falhas do acordo de paz e os desafios que ainda assombram uma das regiões mais voláteis do mundo.
O Fim de um Conflito – e o Começo de Outros
O acordo de paz de Pretória, mediado pela União Africana e apoiado por atores internacionais, foi amplamente celebrado como um triunfo diplomático. Ele conseguiu interromper um conflito que, segundo estimativas, deixou centenas de milhares de mortos e milhões de deslocados. No entanto, a realidade no terreno é bem mais complexa.
A Raiz do Conflito
O conflito no Tigray não foi um evento isolado. Ele é o resultado de décadas de tensões políticas e étnicas profundamente arraigadas. Desde 1991, quando a TPLF liderou a coalizão que derrubou o regime comunista do Derg, o grupo dominou a política etíope por quase três décadas.
No entanto, em 2018, o poder mudou de mãos quando Abiy Ahmed assumiu o cargo de primeiro-ministro, prometendo reformas democráticas e maior inclusão. Sua ascensão marcou um rompimento com o passado, mas também abriu feridas. As tensões entre o governo central e o Tigray, que se sentiu marginalizado, começaram a aumentar.
A escalada para a guerra em 2020 foi, em parte, um reflexo dessas divisões. O conflito devastou a infraestrutura, deslocou milhões de pessoas e criou um vácuo de confiança que persiste até hoje.
O Acordo de Pretória
O pacto de Pretória prometeu a desmobilização da TPLF, a restauração dos serviços básicos em Tigray e a reintegração política da região. Na prática, essas promessas enfrentaram desafios significativos.
Enquanto o cessar-fogo reduziu a violência direta, as divisões políticas e étnicas continuaram a alimentar descontentamento. Regiões como Amhara e Afar, que sofreram diretamente com os combates, acusaram o governo de Abiy Ahmed de negligenciar suas preocupações. Em Tigray, o desarmamento da TPLF gerou frustração entre combatentes que consideram a perda de suas armas como um risco de segurança diante de inimigos históricos, como as forças da Eritreia.
A Complexidade das Tensões Étnicas e Políticas
A Etiópia é um mosaico de mais de 80 grupos étnicos, cada um com suas próprias identidades, línguas e aspirações. Embora o sistema federal étnico do país tenha sido projetado para acomodar essa diversidade, ele frequentemente exacerbou tensões.
A Autonomia Regional: Uma Espada de Dois Gumes
Regiões como Tigray, Oromia e Amhara têm um grau significativo de autonomia sob a constituição etíope. Isso inclui o direito, pelo menos teoricamente, de realizar referendos sobre independência. No entanto, na prática, o governo central tem sido relutante em permitir qualquer movimento que ameace a integridade territorial do país.
Esse modelo federal criou uma dinâmica de competição, em que as regiões buscam maior controle sobre seus recursos e políticas, enquanto o governo central tenta manter a unidade nacional.
O Papel de Amhara e Oromia
Enquanto o foco recente tem sido o Tigray, outras regiões também enfrentam instabilidade. Em Oromia, o maior grupo étnico do país enfrenta insurgências lideradas pelo Exército de Libertação Oromo (OLA), que desafia o governo central.
Em Amhara, a situação é igualmente volátil. A região tem um histórico de rivalidade com Tigray e está profundamente insatisfeita com o acordo de paz, especialmente em relação às disputas territoriais não resolvidas.
Esse cenário cria uma tempestade perfeita para novos conflitos. Com tantas facções competindo por poder, a fragmentação política da Etiópia ameaça sua própria existência como Estado-nação.
O Impacto Humanitário
A verdadeira dimensão da crise humanitária na Etiópia é difícil de quantificar. Durante o conflito no Tigray, organizações como Médicos Sem Fronteiras relataram casos de fome em massa, falta de medicamentos e deslocamento em larga escala.
A Crise Atual
Embora o acordo de Pretória tenha prometido melhorar o acesso humanitário, a realidade é que milhões de pessoas ainda vivem em condições precárias. Segundo a ONU, cerca de 20 milhões de etíopes precisam de ajuda humanitária, incluindo milhões nas regiões de Tigray, Amhara e Afar.
Famílias como a de Aisha, mencionada anteriormente, continuam a lutar para sobreviver. “A guerra pode ter acabado, mas nosso sofrimento continua”, disse ela.
O Papel das ONGs
Organizações internacionais enfrentam barreiras significativas para operar em áreas afetadas. Além da insegurança, há desafios burocráticos impostos pelo governo, que muitas vezes desconfia de intervenções externas.
Análise Crítica: Uma Paz Frágil
A fragilidade do acordo de Pretória levanta questões importantes sobre como os processos de paz são conduzidos em regiões marcadas por divisões profundas.
Falhas Sistêmicas
Uma crítica comum é que o acordo foi mais um cessar-fogo do que uma solução abrangente. Ele não abordou as causas subjacentes do conflito, como a marginalização política, a desigualdade econômica e a competição por recursos.
Especialistas como Alex de Waal, diretor executivo da World Peace Foundation, alertaram que a Etiópia precisa de um processo de reconciliação nacional para evitar o colapso total. “Sem um diálogo inclusivo, qualquer paz será temporária”, afirmou.
O Papel da Comunidade Internacional
Embora a mediação internacional tenha sido crucial para o cessar-fogo, muitos argumentam que os esforços não foram suficientes para garantir uma paz duradoura. A União Africana, por exemplo, foi criticada por sua abordagem limitada, enquanto potências globais como os Estados Unidos e a China têm seus próprios interesses estratégicos na região.
O Contexto Geopolítico
A Etiópia não existe em um vácuo. Como o segundo país mais populoso da África e uma potência regional, sua instabilidade tem implicações para todo o Chifre da África.
Rivalidades Regionais
Vizinhos como Eritreia e Sudão têm seus próprios interesses no conflito etíope. A Eritreia, em particular, desempenhou um papel controverso, enviando tropas para apoiar o governo central durante a guerra em Tigray.
Por outro lado, o Sudão enfrenta suas próprias crises internas, mas também tem disputas fronteiriças com a Etiópia, que poderiam escalar em um conflito mais amplo.
A Influência de Potências Globais
Além das dinâmicas regionais, a Etiópia também está no centro de disputas entre potências globais. Os Estados Unidos têm interesses estratégicos na estabilidade do país, enquanto a China investiu bilhões em infraestrutura etíope como parte de sua iniciativa do Cinturão e Rota.
O Que o Futuro Reserva?
A história da Etiópia sugere que a paz raramente é linear. Em 1991, a queda do regime Derg trouxe esperança, mas também plantou as sementes para os conflitos que vieram depois. Hoje, o país enfrenta um momento semelhante.
Uma Oportunidade Perdida?
Se os líderes etíopes falharem em abordar as causas subjacentes do conflito, o país corre o risco de cair em uma nova rodada de violência. Isso teria consequências devastadoras não apenas para a Etiópia, mas também para toda a região.
Uma Perspectiva de Esperança
No entanto, há sinais de resiliência. Comunidades locais estão trabalhando para reconstruir suas vidas, e há apelos crescentes por um diálogo nacional inclusivo. Além disso, a União Africana tem a oportunidade de usar a Etiópia como um modelo para desenvolver estratégias mais eficazes de resolução de conflitos.
Conclusão
O acordo de paz de Pretória interrompeu a violência em larga escala, mas não trouxe uma paz verdadeira. Ele criou um momento de pausa, uma chance para a Etiópia reavaliar sua trajetória e enfrentar os desafios profundos que continuam a assombrar o país.
A pergunta que permanece é: a liderança etíope – e o mundo – estarão à altura do desafio? Ou a Etiópia será mais um exemplo de uma oportunidade perdida?
O destino da Etiópia está intrinsecamente ligado ao futuro do continente africano. E, como muitos etíopes esperam, talvez dessa vez, a história possa tomar um rumo diferente.